No Brasil, o mundo político é tão maluco, que é a arte que precisa imitar a realidade.
Ah, os anos 90 - época em que a TV aberta brasileira nos apresentou a Banheira do Gugu, a Tiazinha e a Feiticeira, sob o comando de ninguém menos que Luciano Huck, e até mesmo uma Luíza Tomé que se transformava em ninfomaníaca em noites de lua cheia. Sim: neste último caso, estamos falando da icônica novela “A Indomada” - pertencente à era de ouro da teledramaturgia brasileira. Ou, pelo menos, à era de ouro das Novelas da 9, da Rede Globo. Exibida originalmente em 1997, a novela contou com 203 capítulos. Apenas para você ter uma ideia de como a coisa era bem-sucedida na época: “A Indomada” foi lançada depois de “O Rei do Gado” e foi sucedida pela novela “Por Amor”. Pois é: só sucesso de peso.
A história da novela se passa na fictícia cidade pernambucana de Greenville, que herdou seu nome anglófono de construtores britânicos que, tempos antes, construíram uma estrada de ferro na região. Essa parte da história tem ligações com a realidade, diga-se de passagem. Os moradores de Greenville se consideravam um pedaço da Inglaterra no Brasil, tomavam o chá das cinco e misturavam o inglês com o português, como no inesquecível bordão “oxente, my God!”.
De forma geral, essa novela teve muitos pontos altos - como a Eva Wilma interpretando Maria Altiva, bem como a figura misteriosa do “Cadeirudo”, e até mesmo a trilha sonora, embalada por Deborah Blando - cantora meio italiana, meio ucraniana e meio brasileira, responsável pelo hit “Unicamente”. Sim, você sabe que música é essa - embora, provavelmente, acredite que o nome dela é “Raiou o Sol”.
Contudo, o personagem destaque deste vídeo não é nenhum dos citados até o momento - mas, sim, o prefeito da cidade, Ypiranga Pitiguary, interpretado pelo petista Paulo Betti. Além de ser um típico prefeito de cidade do interior do Brasil, Pitiguary era também um sujeito mais do que excêntrico - capaz de cavar um buraco para tentar chegar ao Japão. Não obstante seus dois nomes serem de origem tupi, o prefeito de Greenville julgava ser um legítimo lorde inglês.
Foi por isso que, num arroubo de loucura política, Ypiranga Pitiguary decidiu impor à cidade um decreto estabelecendo a mão inglesa no trânsito da cidade. Sim, você sabe como a coisa funciona: em alguns países, os carros circulam do lado errado da pista - vai entender, né? No Brasil, de forma geral, os automóveis andam pela direita - a chamada “mão francesa”. Pois bem: o lançamento do tal decreto carregou consigo toda a pompa que se pode esperar de um político brasileiro - mais ou menos no estilo daqueles prefeitos da vida real, que fazem eventos para inaugurar coisas como postes e bebedouros.
É claro que adotar a mão inglesa, mais do que uma excentricidade de uma cidade que acredita ser regida por Sua Majestade, é também um grande problema - uma vez que todos os carros que por lá circulam possuem o volante do lado esquerdo. É comum, em países que seguem o padrão inglês de trânsito, que o volante esteja do outro lado - justamente para o condutor ficar próximo ao centro da pista. Então, em função dessa loucura toda, Greenville passou a lidar com uma série de problemas de trânsito. Os acidentes foram se acumulando, enquanto o prefeito, aos berros, culpava a pouca inteligência dos munícipes pela tragédia. Por fim, Ypiranga Pitiguary decidiu revogar seu decreto, depois de rolar muita confusão.
Pois bem: você acha que essa novela retrata um Brasil absurdo e surreal? Ledo engano! A verdade é que, no Brasil, a vida imita a arte - ou, nesse caso, provavelmente foi a arte que imitou a vida mesmo. Acredite ou não, mas diversas ruas Brasil afora possuem mão inglesa, não obstante a esmagadora maioria do trânsito brasileiro circule pela mão francesa.
É o caso de alguns pontos da capital fluminense, especialmente nos bairros da Tijuca, Botafogo, Leme e Olaria. Em outras cidades brasileiras, também podem ser encontradas maluquices do tipo. Só que esse nem é o maior problema. Afinal de contas, em alguns desses casos, a explicação é puramente técnica - em tese, algumas ruas foram tão mal projetadas, que inverter o sentido do trânsito acaba diminuindo o risco de acidentes. O pior mesmo é quando os políticos simplesmente brincam de ser Ypiranga Pitiguary - tomando decisões baseadas mais na sua vontade pessoal, do que em lógica e bom-senso.
Podemos começar citando casos que são algumas ordens de grandeza maiores que o da fictícia Greenville. Pense, por exemplo, na Lei Seca dos Estados Unidos, que funcionou entre 1920 e 1933, estipulada por meio de uma rara emenda constitucional. A ideia parecia ótima, pelo menos no papel - acabar com o consumo de álcool e tirar as pessoas do vício. A realidade, contudo, foi implacável, ao demonstrar a total inviabilidade dessa ideia legislativa.
Não só o consumo de álcool continuou, como a qualidade das bebidas despencou, levando os usuários a prejudicar ainda mais a sua saúde. Para atender à demanda por esse produto, agora ilegal, surgiram máfias criminosas, que agiam de forma violenta e tocavam o terror nas grandes cidades norte-americanas. Por fim, os políticos terminaram por reconhecer sua mediocridade, e voltaram atrás, revogando a tal emenda - usando, como desculpa, o fato de que a retomada da fabricação de bebidas alcóolicas iria gerar muitos empregos.
Numa escala muito maior, temos o exemplo da famigerada Revolução Cultural, promovida na China de Mao Tsé Tung, entre os anos de 1966 e 1976. Essa foi uma década de insanidade e crimes contra a humanidade - tudo com o objetivo de reforçar o poder do líder supremo comunista. Cerca de 20 milhões de pessoas morreram em decorrência desse movimento - por conta de fome, doenças, desastres ambientais, guerras entre facções políticas, e perseguições contra dissidentes do regime. Por sinal, a Revolução Cultural veio na sequência de outro plano fracassado do supremo líder: o Grande Salto Para Frente, responsável por outras dezenas de milhões de mortes, principalmente por fome e por doenças.
Quando Mao finalmente morreu, em 1976, o país estava arrasado. O líder comunista seguinte, Deng Xiaoping, não apenas revogou as medidas e destruiu os grupos maoistas, como afirmou que a Revolução Cultural havia sido “responsável pelo revés mais severo e pelas perdas mais pesadas sofridas pelo Partido, pelo país e pelo povo desde a fundação da República Popular”.
Saltando no tempo, chegamos ao glorioso ano da graça de 2003, quando os Estados Unidos decidiram invadir o Iraque. A malfadada invasão teve início no dia 19 de março, tendo por desculpa a suposta fabricação de armas de destruição em massa pelo país árabe. É claro que tudo não passou de uma grande baboseira: zero armas nucleares foram encontradas, mas estima-se que até meio milhão de iraquianos morreram em decorrência do conflito. Na sequência da queda do regime de Saddam Hussein, abriu-se um vácuo de poder que levaria o Oriente Médio a sofrer com a praga do ISIS, anos depois.
Coisas semelhantes também acontecem, aqui no Brasil, ainda que numa escala menor - para falar também de prefeitos, como o icônico Ypiranga de Greenville. Em terras tupiniquins, são mais do que comuns - até mesmo culturais, pode-se dizer - as famosas estradas que ligam o nada a lugar nenhum. Também existem algumas pontes inexplicáveis - como a de Medeiros Neto, na Bahia, que custou a bagatela R$ 2 milhões, e que simplesmente não possuía cabeceiras ligando-a à estrada. Não podem ficar de fora, também, as superfaturadas e hoje inúteis obras da Copa do Mundo e das Olimpíadas.
Pior do que esse desperdício de dinheiro, porém, são as leis estúpidas que proíbem certas ações e determinam certos comportamentos. Por algum motivo, os políticos acreditam ser capazes de compreender melhor a vontade humana, do que os próprios seres humanos. Daí, nascem ideias como a do prefeito interpretado por Paulo Betti: do dia para a noite, todos os motoristas da cidade, acostumados a circular por determinado sentido, precisam mudar para a mão inglesa. É claro que, nesse tipo de situação, o político parece ser incapaz de perceber os problemas acessórios, advindos de suas decisões.
Essa é a conhecida história, descrita por Frederic Bastiat: a diferença entre o que se vê imediatamente, e o que não se vê. Cada medida estatal adotada traz consigo uma consequência mais imediata e, portanto, mais visível - e uma série de outras consequências que são mais difíceis de se perceber. São justamente essas consequências que se transformam num grande problema para a sociedade, devido ao fato de não serem previstas, mas serem danosas o suficiente para causar estragos na sociedade.
O caso do prefeito Ypiranga Pitiguary, na novela “A Indomada”, pode parecer apenas mais uma situação exagerada e caricata, numa narrativa ficcional. Porém, ele se assemelha bastante a situações reais em que líderes políticos, inclusive aqui, no Brasil, seduzidos por suas próprias convicções, e desconsiderando consequências reais de seus atos, tomam decisões que desencadeiam crises e caos. É um lembrete contundente de como a falta de ponderação e análise pode levar a resultados desastrosos. Quando falamos de políticos que, via de regra, não precisam arcar com as consequências de seus atos, a coisa tende a ser ainda pior.
Quando líderes investidos de autoridade tomam decisões sem considerar as complexidades da realidade, os resultados podem ser catastróficos, afetando negativamente a vida de inúmeras pessoas. A novela “A Indomada”, portanto, serve não apenas como uma fonte de entretenimento, ainda que datada, um produto de seu tempo, mas também como um verdadeiro exemplo que reflete os perigos do poder estatal - principalmente quando exercido ao bel-prazer de seu possuidor.
https://odia.ig.com.br/teresopolis/2021/04/6126847-prefeitura-de-teresopolis-muda-para-mao-inglesa-o-sentido-de-retorno-em-trecho-de-avenida-na-reta.html
https://cacador.sc.gov.br/noticia-649730/
https://rotasdeviagem.com.br/por-que-alguns-paises-dirigem-a-esquerda-e-outros-a-direita/
https://diariodorio.com/mao-inglesa-com-sotaque-carioca-rio-possui-diversas-ruas-e-avenidas-com-a-mao-invertida/