O que a Síria e outros conflitos recentes nos ensinam sobre o papel e soluções de um libertário no meio desse caos?
Após 14 anos de guerra civil e mais de 50 anos de regime, o governo de Bashar al-Assad caiu. As forças rebeldes do HTS tomaram a capital Damasco em 8 de dezembro e outros grupos dissidentes como os curdos do SDF também expandiram seus territórios no interior da Síria. O que esse e outros conflitos modernos podem ensinar aos libertários? Quais alternativas tinham o sírio e o ucraniano frente a guerra para proteger a si e sua família?
As opiniões sobre o futuro da Síria são bastante divididas. Por um lado, o líder do HTS, Abu Mohammed al-Jawlani, é um ex-integrante da Al-Qaeda, considerado um terrorista pelo governo dos EUA. Ao mesmo tempo que tem dado declarações sobre a importância da liberdade religiosa, se relaciona publicamente com cristãos e impõe a lei islâmica de forma branda nas regiões que controla, motivo pelo qual é criticado por outros jihadistas fundamentalistas. O destino das minorias naquele território é incerto. Ainda é cedo demais para conjecturar até mesmo se o equilíbrio de poder será mantido como está. O desfecho da Síria é só mais um dos inúmeros conflitos que estão pipocando pelo mundo. Isso, por vezes, levanta questões práticas para qualquer libertário. Se fosse possível mandar uma mensagem ao passado, aos libertários sírios e ucranianos, quais recomendações o auxiliariam a se salvar? Nem é preciso ir tão longe, afinal, o mesmo exercício pode ser feito para a Cuba pós Fidel ou a Venezuela pós Hugo Chávez.
O famoso libertário Hans-Hermann Hoppe em seu livro “O que deve ser feito” descreve algumas estratégias interessantes. Primeiro assume que o controle de um governo central sobre uma localidade remota ou pequena só pode ser plenamente exercido com o apoio da elite local. Portanto, a estratégia deve ser limitar o direito a voto no que diz respeito aos impostos locais, assim como atuar de forma pacífica, mas não colaborativa com o governo central. Isso pode funcionar em regiões mais estáveis economicamente, mas é difícil imaginar seu sucesso na Ucrânia e Síria. Principalmente porque nesses cenários o indivíduo não financia diretamente seu opressor. Ele é financiado por estados estrangeiros cujos interesses são econômicos ou religiosos. À tentativa de enfraquecer o poder do voto, criar comunidades de confiança e “desmonopolizar” os serviços do governo é válida, porém têm problemas de aplicabilidade em cenários urbanos e regiões de guerra. Mas há alguns outros bons conselhos que poderíamos dar a um libertário do passado e trazer para nós mesmos no presente.
Primeiro e mais importante de todos: tenha habilidades úteis. Este pode parecer um conselho daquele pai que quer convencer o filho a entrar na faculdade, mas é muito mais do que isso. Seja profissionalmente competente na sua área de atuação, se possível esteja entre os 10% melhores. Mas não se limite a isso. Aprenda outras línguas, melhore suas habilidades sociais, tente ser minimamente saudável. A tragédia nunca vem anunciada e pode ser difícil arrumar tempo para se desenvolver depois que ela já bateu a porta.
Outro bom conselho é se mover constantemente. Após ser competente em uma área de alta demanda é preciso ter o poder de atuar globalmente nela. É razoável imaginar que os médicos e programadores sírios tiveram mais oportunidades de migrar com suas famílias do que os funcionários públicos e advogados. A história nos mostra que a capacidade de migrar é em muitos casos a diferença entre a vida e a morte. Os judeus durante a segunda guerra, os irlandeses durante a grande fome de 1845 e até mesmo os latinos em Cuba e Venezuela. Um cenário tão dramático pode parecer distante para alguns brasileiros, especialmente para aqueles que vivem em cidades seguras. Mas a piora vem a galope e é bom ter essa carta na manga.
Por fim, o último conselho seria diversificar. Novamente um clichê, um especialmente criticado pela comunidade biticoinheira. Contudo, não estamos dizendo isso no sentido comumente usado. Uma vez que já é competente e capaz de gerar renda é preciso armazená-la longe da diluição das moedas estatais. Aqueles que pouparam o fruto do seu trabalho em pesos cubanos ou bolívares venezuelanos perderam um tempo precioso de vida. O óbvio candidato contra a diluição é o bitcoin, como sempre: “O bitcoin resolve isso”. Entretanto, a diversificação com moedas melhores já é um bom começo para aqueles menos convictos, já que a diferença entre as taxas de diluição é abismal. Outra forma de encarar esse mesmo conselho é evitar imobilizar demais o seu capital. Possuir terras e bens físicos é uma forma válida de diminuir sua expropriação via inflação, mas têm seus próprios problemas em uma sociedade que desrespeita a propriedade privada, além de conflitar com a capacidade de se manter móvel. Para um jovem sírio, cubano e ucraniano a sua melhor chance era aprender inglês, alguma habilidade empregável e acumular satoshis para conseguir fugir.
Porém, é preciso levar esses conselhos com cautela. São o melhor possível para alguém que mora numa região instável como a Síria, mas não necessariamente o melhor para um brasileiro que mora no interior, ou cuja clientela é brasileira, ou mesmo para alguém mais velho com filhos. Diante de um colapso societário no Brasil esses conselhos serão úteis, mas considere o custo de oportunidade de pô-los em prática. Os leve com ceticismo e não como regra. Até agora apenas alternativas relacionadas à fuga foram discutidas, afinal, não há muita esperança para o florescimento da liberdade em uma guerra. Mas em outros contextos, como o Líbano pós-guerra ou mesmo Argentina pós-peronismo, devemos discutir como estimular o desenvolvimento de uma sociedade libertária. Deixando claro, porém, que o histórico de sucesso dos imigrantes é mais longevo do que o das comunidades libertárias.
Nesse campo as opiniões e teorias são infinitas. Todas possuem seus próprios méritos e limitações, sendo a maioria um sucesso temporário. Existe a participação política defensiva e ofensiva, esta última com algum grau de sucesso na Argentina. As Zona Autônomas Temporárias e a aplicação da contra economia são outros bons exemplos. Há aqueles que defendem a criação de projetos culturais como músicas e vídeos. Há ainda os que acreditam numa vida rural, em regiões nas quais existe arbitragem geográfica, ou mesmo em cidades privadas como Próspera. Esses grupos tendem a criticar mutuamente, mas a verdade é que, assim como para os conselhos anteriores, a aplicação de cada estratégia depende das condições específicas de cada um. Não apenas condições econômicas, mas também sociais, familiares e religiosas.
Porém, com um histórico melhor do que todas essas tentativas, está o nascimento de sistemas descentralizados e distribuídos como o bitcoin. Segundo o índice de adoção global de 2024, publicado pela Chainalysis, entre o top 10 países cuja população mais utiliza cripto no cotidiano temos: Índia, Nigéria, Indonésia, Vietnã, Rússia, Ucrânia e Brasil. Países cuja população têm dificuldades básicas como controle de capitais e acesso a serviços bancários. Foi a descentralização do dinheiro, tão defendida por Hayek que permitiu que milhões de pessoas pelo globo se protegessem da diluição e pudessem ter o direito de comercializar seus produtos e trabalhos. Pode não parecer grande coisa para o brasileiro médio, que dado todas as suas dificuldades, têm relativa facilidade em acessar o sistema financeiro. Uma crítica a esse estudo é que trata as criptos no geral e não apenas do bitcoin em particular. É possível então que o crescimento seja concentrado em stable coins ou altcoins. Porém, ele também apresenta o crescimento dividido por ativo e o Bitcoin lidera com folga. Fora que o índice de dominância segue em relativa estabilidade desde 2021, com 56%.
O surgimento e aperfeiçoamento de sistemas descentralizados é a melhor aposta para a manutenção de um futuro livre. A revolução de um dinheiro não confiscado e não diluível já mudou o mundo para melhor. Entretanto, outros sistemas estão nascendo e sendo testados: o protocolo Nostr de comunicação descentralizada; o mercado descentralizado de apostas da Polymarket; a comunicação via Torrent; e a rede Union. Ainda há iniciativas como a Private Law Society, que busca garantir a execução da justiça privada. São todas ferramentas que auxiliam os indivíduos a exercerem suas atividades sem a benção do estado. A adoção desses sistemas é proporcional a sua importância, suas alternativas e facilidade de utilização. O Nostr será mais demandado conforme a censura se fortalece. A Private Law Society quando a justiça comum estiver desacreditada por grande parte da população e assim por diante. Sempre existiram e sempre existirão conflitos. As motivações humanas são obscuras e muitas vezes contraditórias. Mas é inegável o progresso de sistemas descentralizados e distribuídos na capacidade de mitigar os problemas causados pelo estado tais como: legislações inúteis de propriedade intelectual; e diluição do poder de compra. Nunca as palavras de Eric Hughes ao manifesto Cypherpunk soaram tão verdadeiras e belas:
“Nós não podemos esperar que governos, corporações, ou outras grandes organizações sem rosto nos garantam a privacidade por sua bondade. Nós, os Cypherpunks, somos dedicados a construir sistemas anônimos”.
https://www.chainalysis.com/blog/2024-global-crypto-adoption-index/
https://www.youtube.com/watch?v=KukdRn5JcrE
https://worldpopulationreview.com/world-city-rankings/most-violent-cities-in-the-world
https://pt-br.blink.sv/blog-br/bitcoin-adoption-in-indonesia
https://cryptoforinnovation.org/five-reasons-why-vietnams-crypto-usage-is-so-high/
https://news.bitcoin.com/bitcoin-growing-fast-in-unbanked-indonesia
https://privatelawsociety.net/